O relicário

O relicário

O relicário.

            A última pá de terra fora lançada sobre o caixão de Madame Laila, uma poderosa mulher cuja vida sempre fora dedicada ao ocultismo e magia negra, missão herdada de seus antepassados por mais de seis séculos, a partir de um tratado escrito em pergaminho, guardado secretamente por todos aqueles que foram se sucedendo na missão.

            Estabelecido estava que o tratado não poderia se quebrar, devendo ser passado de pai para filho ou de mãe para filha, assim obrigatoriamente, caso contrário, uma maldição se abateria a qualquer estranho que dele tomasse posse.

            De geração em geração, ao longo dos séculos, o tratado seguiu sendo repassado e herdado da forma promulgada, guardado em sigilo dentro de um pequeno relicário feito em bronze, contendo um pequeno canudo de papel, amarrado com um fino cordão embainhado em ouro.

            Madame Laila foi a última da geração de herdeiros do tratado, o qual não havia mais a quem ser destinado, a não ser por algum posseiro ou posseira qualquer, de qualquer canto do mundo e assim seria lançada a maldição de mais de seiscentos anos ou, exatamente, seiscentos e sessenta e seis anos.

            Assim estava escrito sob a forma de linguagem cifrada, com uso de anagramas e linguagem scabreux, significando algo difícil, escabroso e perigoso dissera o seu advogado, ao recolher as peças de sua casa que seriam ofertadas em leilão para admiradores de madame Laila horas depois de seu sepultamento, desejosos de se apropriarem de seus pertences como forma de lembrança.

            O riso foi geral, contrastando com o ambiente que deveria ser de tristeza.

            “Isso é lenda doutor. Madame Laila era uma mulher de Deus.” Disse um homem, político famoso e bastante religioso, a quem havia sido garantido por ela, a sua reeleição, fato que o livraria de inúmeros processos judiciais por diversos crimes, entre eles pedofilia e corrupção.

            “Não acredito nessas coisas.” Alardeou uma mulher, rindo em zombaria, ao lado de uma amiga, também aos risos, a qual eram vistas sempre abraçadas, com seus vestidos extravagantes e chamativos, em inúmeros eventos festivos ou chorosos, como aquele.

            “O doutor diz isso porque quer ficar com essa caixa de lata que para mim não tem valor algum.” Falou baixinho, quase um cochicho, em um canto da casa, uma mulher magrinha, de rosto envelhecido, que cuidava da limpeza de toda a casa, seu mobiliário e seus objetos de decoração, segurando um espanador, sem que ninguém a ouvisse ou a percebesse ali.

            E assim muitos outros, também em tom de zombaria, questionavam o tal advogado, já em julgamentos a ele, por considerarem o mais interessado naquela relíquia.

            Muitos foram os argumentos e as discussões, as trocas de insultos entre eles, as ofensas e maledicências, cuja contrariedade apenas aumentava, assim como aumentavam os insultos, a raiva e o ódio, sem que ao menos tentassem, antes de tudo, desvendar o que de fato haveria naquele relicário e quais os seus dizeres.

            Se boato ou não, a fé e a descrença se debatiam em torno de algo que ninguém conhecia de verdade, apenas, tão somente, por ouvirem dizer, da boca daquele advogado.

            Os ânimos se acaloraram até partirem para a agressão corporal, cada vez mais violentas e sanguinárias, cada qual usando sua melhor arma para se livrar do oponente, fosse com as mãos, por meio de estrangulamento, golpes de faca, cortando traqueias, rasgando abdomens ou tiros, perfurando cabeças, peito ou estourando miolos, lançados em sangue à várias partes da casa, transformando o ambiente em um cenário de terror e morte, a exceção da não notada mulher magrinha que apenas observava tudo em silêncio e com horror.

            Em poucos minutos foram caindo todos, uns sobre os outros, cobrindo todo o chão da casa por um rio de sangue a correr, como um rio vermelho.

            Sobrevivente, sem entender a razão de tudo aquilo, a mulher magrinha abriu a pequena caixa de bronze, o relicário com o papiro e suas inscrições. Junto ao papiro, um pequeno bilhete com uma curta mensagem. “Está em suas mãos prosseguir a missão.”

FIM.

Orlando Rodrigues

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